“Essa tal Felicidade”: em alguns casos, um problema de controle de estímulos (Nicodemos Batista Borges)
Segundo Houaiss e Villar (2008), o termo “felicidade” refere-se, entre outras coisas, à satisfação, contentamento e bem-estar. Todavia, chegam diariamente aos nossos consultórios pessoas que apresentam como queixa “não ter encontrado a tal da felicidade” e/ou “não sentir felicidade” ― ou variações em que não se utiliza o termo felicidade, mas que se referem a essa sensação ―, e que relatam sentir “angústia”, “tristeza”, “insatisfação com sua vida”, etc.
Os Analistas do Comportamento (Banaco, 1999; Oliveira e Borges, 2007) defendem que uma pessoa procura um psicólogo clínico quando vivencia contingências aversivas ou ausência de reforçadores. Então, seu papel enquanto terapeuta analítico-comportamental é auxiliar o cliente a identificar essas contingências aversivas e modificá-las e/ou desenvolver ― através de modelagem ou modelação ― padrões comportamentais capazes de produzir reforçadores.
Até aqui, tudo vai bem! Contudo, tenho observado ― e aqui me refiro exclusivamente à minha experiência, pois não sei se isso tem acontecido com meus colegas ― que a frequência de clientes que, aos olhos da sociedade, têm vidas “maravilhosas” e me procuram relatando essa mesma queixa tem aumentado significativamente.
Diante dessa situação, enquanto clínico analítico-comportamental, minha atitude é investigar as contingências das quais esse comportamento é função ― o que fazemos, em geral, através de solicitação de relatos sobre o dia-a-dia do cliente e da sua compreensão de sua história. Faço o que chamamos de “Avaliação Funcional”.
O primeiro item mencionado anteriormente, os “relatos sobre o seu dia-a-dia”, tem por objetivos identificar: 1) possíveis situações aversivas; 2) ausência de reforçadores; 3) falta de repertórios; 4)habilidades (repertórios); 5) padrões comportamentais; e 6) possíveis reforçadores. Veja que o terapeuta não se limita a investigar o que há de “errado”, mas levanta também o que “corre bem”. Essa escolha de se averiguarem informações sobre o que dá e o que não dá certo na vida do cliente ― sob a ótica dele (cliente) ― visa facilitar ou ampliar a avaliação funcional do caso, pois nos permite uma maior compreensão da dinâmica de seu funcionamento.
Para complementarmos a avaliação funcional, levantamos um histórico de vida do cliente, em que importa verificar não só possíveis fatores que contribuíram para o desenvolvimento da queixa, mas também notar como o cliente relata sua própria história, que sem dúvida é uma pista importante sobre possíveis contingências que mantêm a queixa.
Quando nos deparamos com um cliente que apresenta essa queixa de “não se sentir feliz”, a primeira hipótese que levantamos é a de “problemas reais” na vida cotidiana. Estou chamando de “problemas reais” aquelas questões que são rapidamente identificáveis pela sociedade, tal como falta de dinheiro, falta de emprego, falta de estudo, falta de namorado, falta de tempo, etc. Todavia, em muitos casos, o cliente não apresenta nenhum desses problemas; ao contrário, os clientes relatam que amigos e familiares que o circundam não entendem o porquê do seu sofrimento, alegando que ele (cliente) “tem tudo: dinheiro, status, companhia, etc.”
Nesses casos, o terapeuta analítico-comportamental deve investigar o que o cliente nomeia como “felicidade”. Se a resposta for algo do tipo “é um constante estado de prazer”, o terapeuta deverá discutir com o cliente ou propor exercícios que o auxiliem a verificar, em primeiro lugar, se “felicidade” corresponde realmente a “prazer” e, em segundo, se podemos ter essa sensação de forma constante.
Outro significado que o cliente pode dar para “felicidade” é “satisfação”, “contentamento”, “bem-estar”, o que é algo possível de se alcançar. Para aqueles clientes que não apresentam “problemas reais” e que deram esse significado para “felicidade”, o terapeuta poderá, então, levantar a hipótese de que existe um problema no que vou chamar de “resposta de observação”.
Estarei empregando o termo “resposta de observação” para me referir ao comportamento de um sujeito observar (e ficar sob controle de) seu próprio comportamento. Reynolds (1961) fez uma importante contribuição para compreendermos o comportamento humano. Através de um estudo com pombos, verificou que o sujeito não responde ao estímulo como um todo, mas sim age sob controle de uma dimensão do estímulo. Essa descoberta é o ponto de partida para a compreensão do comportamento dessas pessoas que têm vidas “maravilhosas” ou que, pelo menos, não apresentam “problemas reais” aos olhos da sociedade, mas que vêm aos nossos consultórios com queixas de que “não encontram a tal felicidade”.
Em muitos desses casos, o que tenho observado é que esses clientes apresentam problemas no que chamei de “resposta de observação”, ou seja, eles atentam para apenas parte dos eventos de sua vida em geral: exatamente para aqueles em que cometem “erros”, ou para aquelas coisas a que não têm acesso.
Se compararmos o estudo de Reynolds (1961) às dimensões da vida (estímulo) desses clientes, o que controla seus comportamentos de queixarem-se de si ou de suas vidas são exatamente esses “fracassos” ou “não realizações”. Contudo, existem muitas outras dimensões da vida que estão sendo “descartadas” no comportamento de auto-observação de seus próprios comportamentos ou de sua vida e, nesses casos, esse comportamento de auto-observação deve ser um dos focos da intervenção.
Portanto, o terapeuta analítico-comportamental deverá identificar, através da avaliação funcional, se ocorre esse padrão do cliente de observar ou avaliar seus comportamentos ou sua vida com pesos diferentes. Em casos afirmativos, a intervenção deverá ter como objetivo tornar a “resposta de observação” do cliente sensível às demais dimensões desses estímulos (sua vida ou seus comportamentos). A resposta de observação adequada é aquela que observa e avalia todos os comportamentos do indivíduo e não apenas parte deles. Um exemplo de intervenção possível nesses casos é pedir para que o cliente relate e/ou registre todos os momentos do seu dia; a partir daí, o terapeuta irá discutindo com o cliente cada um deles, podendo qualificá-los como: “conquistas”, “capacidades”, “realizações”, “fracassos”, “incapacidades”, “não realizações”, etc. A repetição desse exercício deve ser feita até que o cliente seja capaz de identificar e avaliar, com os mesmos critérios, todos os eventos de seu dia-a-dia, sendo eles “bons” ou “ruins”.
A intervenção, sobre a “resposta de observação” ajustará a “percepção” do cliente à sua “vida real”, além de permitir que ele experimente “essa tal felicidade”.
Considerações Finais
O terapeuta analítico-comportamental, através da avaliação funcional, identifica quais são as contingências que mantêm o comportamento-problema apresentado pelo cliente.
No caso de queixas relacionadas à insatisfação com a vida ou consigo mesmo, levantamos aqui pelo menos três hipóteses que devem ser avaliadas: 1) “problemas reais”, quando os problemas existem e o cliente vem para que o auxiliemos na resolução deles; 2) problema na ideação, em que o cliente acredita que é possível viver um estado constante de felicidade (prazer); e 3) “respostas de observação”, em que o cliente atenta apenas para uma parte de sua vida ou se utiliza de critérios diferentes para avaliar seus sucessos e fracassos.
Na primeira hipótese, a avaliação deverá determinar se o problema é de déficit de repertório, excessos comportamentais, problemas nas contingências, etc. Nada muito diferente do que o analista do comportamento está acostumado a lidar.
As duas outras hipóteses (segunda e terceira) tratam de análises que devem considerar não apenas variáveis ambientais externas e presentes, mas também contingências sutis, como histórico de compreensão (história de vida) em relação ao termo “felicidade” e dimensões do estímulo que controlam o responder, respectivamente. Essas sutilezas são muitas vezes negligenciadas por analistas do comportamento pouco experientes.
A segunda hipótese exigirá que o terapeuta intervenha visando facilitar a discriminação do fluxo normal da vida, a qual apresenta pequenos desequilíbrios, seja por oscilações no responder, seja por oscilações nas contingências ― principalmente se pensarmos nas Operações Estabelecedoras ―, o que naturalmente gera uma constante mudança nas nossas sensações, inclusive às relacionadas à satisfação.
Já, na terceira hipótese, naqueles casos em que o que o cliente observa é apenas parte do que ele faz, o terapeuta deverá utilizar um procedimento para gerar correspondência entre o fazer e o observar seu fazer, que consiste de ensinar o cliente a observar, avaliar e considerar com os mesmos critérios todos os seus comportamentos e as dimensões de sua vida.
Através da resolução desses comportamentos-problema é possível que o cliente consiga vivenciar essa tal da “felicidade”.
Referências
Banaco, R. A. (1999). Técnicas cognitivo-comportamentais e Análise Funcional. Em: R. R. Kerbauy e R. C. Wielenska (Orgs.). Sobre Comportamento e Cognição: psicologia comportamental e cognitiva da reflexão teórica à diversidade na aplicação, Vol. 4 (pp. 75-84). Santo André: ESETec.
Houaiss, A. e Villar, M. S. (2008). Minidicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 3 ed. Rio de Janeiro: Objetiva.
Oliveira, D. L. e Borges, N. B. (2007). O ambiente natural como fonte de dados para a avaliação inicial e a avaliação de resultados: suplantando o relato verbal. Em: D. R. Zamignani, R. Kovac e J. S. Vermes (Orgs.). A Clínica de Portas Abertas: experiências e fundamentação do acompanhamento terapêutico e da prática clínica em ambiente extraconsultório. (77-100). Santo André: ESETec.
Reynolds, G. S. (1961). Attention in the pigeon. Journal of Experimental Analysis of Behavior, 4, 203-208.
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