terça-feira, 12 de abril de 2011

Um certo olhar

Vou reproduzir aqui uma análise comportamental do filme "Um certo olhar"; esta análise encontra-se no Boletim Paradigma volume 5 set. 2010 - http://www.nucleoparadigma.com.br/

  
Comportamento em cena
Um certo olhar é o nome dado ao filme originalmente intitulado Snow Cake, cuja tradução literal para o português seria Bolo de Neve. No filme, o personagem Alex (Alan Rickman) é um ex-presidiário, recém-saído da cadeia, cujo objetivo é encontrar a mãe de seu falecido filho no Canadá. Na viagem, ele conhece Vivviene (Emily Hampshire), uma jovem marcante para quem ele oferece carona. No caminho, eles sofrem um acidente de carro e Vivviene não sobrevive. Sentindo-se culpado, Alex resolve procurar a mãe da jovem para comunicar o acontecido e lhe entregar o presente que a filha havia comprado minutos antes do acidente. ao encontrá-la, Alex descobre que a mãe de Vivviene, Linda (Sigourney Weaver), é autista. Neste primeiro encontro, ele fica admirado como a aparente indiferença que a morte da jovem Vivviene provocou em Linda, uma vez que ela não demonstra nenhum sofrimento pela perda da filha. Por uma série de circunstâncias, Linda pede que Alex permaneça em sua casa por alguns dias, a fim de que ele possa auxiliá-la com a retirada do lixo (uma das tarefas semanais mais desagradáveis para ela), e ele acaba ficando até o funeral de Vivviene.
O filme ilustra os desafios cotidianos enfrentados por uma pessoa com características autistas para viver de acordo com os seus interesses peculiares e se adaptar ao que é socialmente esperado, revelando também como o personagem Alex (mesmo surpreso com o jeito de Linda) consegue lidar com as esquisitices da nova amiga. Linda é uma autista adulta que aprendeu a morar sozinha e tem rotina de vida bastante organizada. Por exemplo, ela já tem um arranjo definido para cada objeto em sua casa, mostra uma aversão extrema a qualquer tipo de sujeira, vai e volta do trabalho sempre na mesma hora, pelo mesmo caminho, e não precisa de outras pessoas ao seu redor (exceto para a realização de tarefas desagradáveis, como a retirada de lixo). Para ela, não é uma tarefa fácil lidar com qualquer alteração deste cotidiano e morte da filha, bem como a chegada de Alex desestabiliza essa rotina.
Para auxiliar a compreensão dessas diferenças, é necessário entender alguns dos padrões comportamentais que frequentemente são identificados no repertório de indivíduos que recebem o diagnóstico de autismo. O quadro de autismo é considerado um transtorno do desenvolvimento e pertence ao grupo dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TID). As caracteríticas deste grupo são definidas por padrões de comportamento específicos, dentre os quais e destaca o prejuízo severo e invasivo em áreas de desenvolvimento relacionadas às habilidades de interação social recíproca, às habilidades  de comunicação verbal e não verbal e à presença de comportamento, interesses restritos e atividades estereotipadas.
No caso de Linda, encontramos vários padrões comportamentais que ilustram a sua dificuldade de interação social. Por exemplo, Linda não consegue manter contato visual direto e não tem interesse em se relacionar com colegas de trabalho ou vizinhos. Além disso, no filme encontramos duas cenas marcantes que apresentam a ausência de expressão facial das emoções: a primeira quando recebe a noticia da morte da filha e a outra quando tem de fazer o reconhecimento do corpo do necrotério. Nas duas situações, Linda não sabe como se portar e não esboça nenhum tipo de reação emocional.
Em relação aos prejuízos qualitativos na comunicação, é comum identificar nos TID vários atrasos ou mesmo ausência do desenvolvimento da fala (sem mecanismos de compensação). No caso de Linda, ela apresenta falta de iniciativa para o diálogo com outros, perseveração em apenas um assunto e, acima de tudo, uma comunicação verbal bastante pragmática. Linda se comunica basicamente para conseguir coisas ou evitar que coisas desagradáveis aconteçam a ela. É interessante observar que, quando Linda tenta esboçar certo refinamente social (por exemplo, ao oferecer chá para Alex), ela o faz por modelos de conversa claramente aprendidos e treinados, que pouco tem a ver com a observação de comportamento do outro.
Por fim, outro padrão comportamental comum refere-se à presença de comportamento, interessantes e atividades estereotipados, com prejuízo na imaginação e comportamento de simbolizar que implicam padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses e atividades. Para Linda, alterações em sua rotina geram repostas emocionais intensas. A simples alteração de lugar de um objeto lhe causa extrema agitação. No filme, após o funeral da filha, vizinhos e parentes se reúnem em sua casa para prestar condolências. Entretanto, nesta reunião, objetos são mudados de lugar, farelos de comida caem no chão e várias pessoas conversam ao mesmo tempo, produzindo um "barulho" ao qual ela não acostumada. Em determinado momento da reunião, Linda tem uma explosão emocional: começa a gritar e manda todos embora. O comportamento de Linda faz com que todos os estímulos aversivos do momento cessem.
O filme ainda mostra Linda executando alguns movimentos autoestimulatórios, também característicos de pessoas com autismo. Entre eles, destacamos a cama elástica (Linda tem uma em seu quintal) e o flapping, movimentos laterais de balanço que faz com as mãos. Além disso, Linda apresenta respostas incomuns a estímulos sensoriais, tais como gosto exagerado por objetos luminosos que brilham e piscam e apetite por neve. Aliás, o nome do filme em inglês vem desta última característica de Linda, e Alex, ao ir embora de sua casa, lhe deixa de presente na geladeira um bolo de neve. Enfim, Snow cake é um filme que merece ser visto, tanto porque apresenta de forma bastante clara e humana as dificuldades que uma pessoa com autismo enfrenta em seu cotidiano como porque permite ao analista do comportamento observar as relações de controle de estímulo que determinam o comportamento de Linda, evidenciando as diferenças das variáveis de controle das relações interpessoais de neurotípicos. 

Texto de Cassia Leal da Hora e Maria Carolina C. Martone.  

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